Escrito por: Marina Maria e Vanessa Galassi

REPORTAGEM | Por que o homeschooling ameaça os brasileiros e o Brasil?

Especialistas, profissionais e entidades alertam sobre os prejuízos da educação domiciliar ─ homeschooling ─ para o aprendizado e desenvolvimento de crianças e adolescentes

Jean Maciel

A professora Ana Tereza Ramos de Jesus Ferreira está na rede pública de ensino do DF há 25 anos. Atualmente, ela atua no Centro de Ensino Fundamental Athos Bulcão, no Cruzeiro Novo. Depois de dois anos de aulas remotas devido à pandemia da Covid-19, a educadora verificou uma série de problemas de aprendizado e também psicológicos nos estudantes. A análise foi comprovada pelo Processo de Avaliação Diagnóstica aplicado pela própria Secretaria de Educação do DF.

“Vejo que eles (os estudantes) têm uma dificuldade imensa em estabelecer rotina, em entender os processos, em entender que o estudo demanda dedicação, demanda empenho. Há muita dificuldade de atenção e concentração. Além da questão da aprendizagem, temos os problemas emocionais. Temos alunos com ansiedade, com estresse; tudo influencia no processo de ensino aprendizagem”, esclarece a professora.

Instituto Neurosaber O mesmo foi observado pela  pedagoga Luane Godoy, que  também trabalha na Secretaria de Educação do DF,  com estudantes da pré-escola. “Apesar de acreditar que nós fizemos um trabalho de excelência naquele momento com os recursos que tínhamos, estamos percebendo muitas dificuldades nos estudantes, principalmente na educação infantil, onde a gente trabalha muito através das interações sociais, habilidades emocionais, coordenação motora fina para trabalhar na escrita, e até mesmo na linguagem”, afirmou.

“Nesses espaços (escolares) é possível a construção da identidade, as trocas de conhecimento, desenvolvimento de habilidades e regras sociais, as quais são importantes para a trajetória de vida”, explica a psicóloga Lívia Borba, pós-graduada em terapia cognitivo-comportamental.

Mas o direito de se desenvolver um ser humano pleno está ameaçado pela proposta da educação domiciliar, defendida nacionalmente pelo governo Bolsonaro e, no DF, pelo governo Ibaneis Rocha. Também conhecida como homeschooling, a educação domiciliar é um método em que pais e mães, ou qualquer pessoa escolhida por eles, tornam-se professores da criança, exercendo o processo em casa, e não em um ambiente projetado para isso, como é a escola.

Enquanto o ensino remoto se mostrou como uma situação imposta devido à necessidade de isolamento social frente à pandemia, a educação domiciliar seria uma modalidade, algo permanente, que pode ser acionada pelos familiares e imposta a estudantes.

“O processo de ensino aprendizagem perpassa, necessariamente, pela interação. Além disso, o trabalho que um professor desenvolve, é um trabalho técnico, assim como um médico, um advogado, um dentista”, contesta a professora Ana Tereza. Na mesma linha, a pedagoga Luane Godoy afirma: “Na escola não é trabalhado somente o lado cognitivo e intelectual das crianças e adolescentes, mas também o emocional, o físico, o cultural. O que não é propício no ambiente familiar, até mesmo porque há certas habilidades que só vamos construir com o convívio social”.

Fundação Abrinq

Vulnerabilidade

Para além dos prejuízos no ensino e na formação das crianças e adolescentes, a educação domiciliar ainda pode deixar mais agudos os percentuais de violência e abuso contra esse segmento.

Policial militar há 20 anos, Jorge Carvalho* conta que atendeu muitas ocorrências de violência, sobretudo no âmbito familiar e doméstico. De acordo com o policial, essas violações só foram descobertas graças à notificação de terceiros, vizinhos, agentes de saúde e, muitas vezes, membros da escola da criança ou do adolescente vítima. “Durante palestras realizadas em algumas unidades escolares, a diretoria ou professores faziam esse tipo de denúncia e pediam o apoio para que a equipe policial conversasse com a vítima”, relata.

O PM, que prefere não se identificar porque, segundo ele, na corporação há burocracia para autorizar entrevistas dos agentes e fiscalização rígida sobre as falas, acredita que os defensores da educação domiciliar não levam em consideração nem o processo de aprendizagem, nem “a segurança dos menores”, “haja vista o crescimento dos casos de violência doméstica cometidos contra crianças e adolescentes praticados principalmente por familiares e pessoas mais próximas”, destaca o policial especializado em Direito de Estado e Educação em Gênero e Direitos Humanos.Os dados apontados pelo policial militar se concretizam no relato da professora Ana Tereza, do CEF Athos Bulcão, no Cruzeiro. “No último dia 18 de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, trouxemos uma pessoa para falar sobre o tema na minha escola. Só por isso algumas meninas chegaram pra gente e disseram: ‘olha, estou sofrendo violência’. Veja a importância de a gente trazer a informação. E a escola faz isso”, conta a professora que entende uma sociedade sem a garantia do direito da criança frequentar a escola como uma “sociedade exclusora”.

A psicóloga Lívia Borba, pós-graduada em terapia cognitivo-comportamental, pontua que “a escola assume um papel importante no rompimento da violência contra acriança”. “A comunidade escolar tem a possibilidade de perceber não somente as marcas das agressões físicas, como as mudanças de comportamentos; investigar as ocorrências de maus tratos e atuar de maneira eficiente nos casos. O isolamento social corroborou com a vulnerabilidade das crianças, deixando-as sem olhar de proteção da escola e da comunidade”, afirma.

Negada a lei, ofertado o ilegal

Se de um lado o governo do Distrito Federal e sua base apoiadora chegam a falar em “reconhecimento de direito” ao defender uma suposta “liberdade de escolha” ao tentar legalizar a educação domiciliar, de outro, o mesmo governo nega o Atendimento Pedagógico Domiciliar (APD) a crianças e adolescentes enfermos que não têm possibilidade de frequentar o ambiente escolar.

Criado pela Lei Federal 13.716/2018, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o APD “assegura atendimento educacional ao aluno da educação básica internado para tratamento de saúde em regime hospitalar ou domiciliar por tempo prolongado”. Diferente da educação domiciliar, o Atendimento Pedagógico Domiciliar tem o objetivo de convivência com os pares, é transitório e o professor da rede pública vai à residência do estudante para desenvolver o ensino aprendizagem.

“Essa educação é uma oferta na perspectiva de educação inclusiva. Não é só o professor ir à residência. É ir à residência, mas ter todas as atividades relacionadas com o que está acontecendo dentro da escola. O APD não tira a importância do papel do professor, e visa à inclusão desse estudante, mesmo ele em tratamento de saúde”, explica a professora da rede pública de ensino do DF Helma Salla, que pesquisa o tema em sua tese de doutorado.

Há 25 anos na rede, Helma Salla já exerceu o APD, e viu de perto a luta das famílias que precisam do serviço. “Hoje, os estudantes do DF que estão acamados e recebem o Atendimento Pedagógico Domiciliar só usufruem do direito porque as famílias entraram na justiça e ganharam a ação”, afirma a professora que é contundente ao criticar a educação domiciliar.

“O governo nega o APD porque não quer uma política pública de oferta de escolarização a esse sujeito acamado. O que ele (o governo) quer é ofertar a retirada do professor. Isso é negar a escolarização; é negar a educação”, diz Helma Salla, se referindo ao chamado homeschooling.

A qualquer custo

Além das avaliações negativas e dos alertas sobre os riscos da educação domiciliar feitos por especialistas dos diversos ramos, a pesquisa nacional “Educação, Valores e Direitos”, realizada pelo Datafolha e pelo Centro de Estudos de Opinião Pública (CESOP/Unicamp), mostra que 78,5% dos entrevistados afirmaram ser contrários ao direito dos pais de tirar os filhos da escola para educá-los em casa.

Nada disso foi suficiente para que fosse barrada na Câmara dos Deputados a aprovação do texto principal do projeto de lei que regulamenta o ensino domiciliar no Brasil, realizada no último dia 19 de maio. A proposta faz alterações na Lei de Diretrizes e Bases da Educação e até no Estatuto da Criança e do Adolescente, além de compor a chamada "pauta ideológica" do governo Jair Bolsonaro (PL). Entre os defensores da educação domiciliar, estão a ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves, pré-candidata ao Senado pelo Republicanos do Distrito Federal, e até o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, parte do processo do STF no inquérito que apura ataques a membros da Corte.

Pelo Código Penal, a adoção da educação domiciliar é considerada abandono intelectual. Além disso, decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) proíbe a prática no Brasil.

O projeto da educação domiciliar chegou ao Senado como PL 1.388/2022, e está na Comissão de Educação. O relator é o senador Flávio Arns (Podemos-PR). Se for alterado, o texto volta à Câmara. Caso contrário, segue para sanção ou veto de Jair Bolsonaro.

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Não é só a Câmara Federal que quer, a qualquer custo, aprovar o chamado homeschooling. Em dezembro de 2020, o governador do DF, Ibaneis Rocha, publicou a Lei 6.759, que institui a educação domiciliar no Distrito Federal.

A proposta da lei é de autoria do Poder Executivo e dos deputados João Cardoso (Avante), Delmasso (Republicanos), Eduardo Pedrosa (União Brasil) e Júlia Lucy (Novo). Além desses parlamentares, durante tramitação na Câmara Legislativa do DF, o projeto teve apoio de Agaciel Maia (PL), Daniel Donizet (PL), Fernando Fernandes (Pros), José Gomes (PSB), Martins Machado (Republicanos), Reginaldo Sardinha (Avante), Valdelino Barcelos (PP). Contrários à proposta, se posicionaram os deputados, Chico Vigilante (PT), Arlete Sampaio (PT), Fábio Felix (Psol), Leandro Grass (Rede/atual PV) e Reginaldo Veras (PDT).

Em desencontro com tudo que é real, a lei distrital prevê que a educação domiciliar “visa o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente, além de seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Desmascarado

 

Bem blogadoEm nota publicada nesse mês de maio, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação lembra que o projeto da educação domiciliar, ou homeschooling, foi apresentado em 2012 e “só se tornou viável a partir da eleição de Jair Bolsonaro”.

“A dialética marxista e a identidade de gênero são os alvos centrais desse grupelho, que tem sofrido sucessivas derrotas no Supremo Tribunal Federal ao tentar emplacar suas teses sem fundamentos junto a sistemas escolares país afora. E foi nessa contingência de avançar suas pretensões sobre os sistemas de ensino, que passou a investir – com o apoio do governo federal – num sistema de ensino individualizado e promovido diretamente pelas famílias, que opta claramente por confinar e alienar crianças e jovens da convivência social e do conhecimento amplo”, afirma a nota.

Na nota, a CNTE afirma que “o homeschooling é mais uma batalha num setor onde continua imperando a falta de políticas efetivas para enfrentar os reais problemas da educação brasileira”.

Entre as graves consequências da transformação da educação domiciliar em lei, a Confederação aponta a redução de “investimentos públicos em infraestrutura e em contratação de pessoal nas escolas e em outras áreas de proteção da infância e da juventude no Brasil”, indo ao encontro de projetos de “caráter privatista e de esvaziamento das políticas públicas”.

A CNTE ainda destaca que a educação domiciliar tem potencial para reduzir números de escolas e profissionais de educação. “Na mesma linha do que pretende a reforma do Ensino Médio, teremos menos escolas, menos profissionais da educação, menos condições para a aprendizagem de qualidade e menos perspectiva de futuro promissor, sobretudo para aqueles que já dispõem de tão pouco para enfrentar as desigualdades sociais que assolam o país desde a sua descoberta”, traz a nota.