Rádio Cultura FM pública e no ar é ato de resistência
Trabalhadoras e trabalhadores da empresa lidam com falta de recursos e excesso de demandas
Publicado: 16 Dezembro, 2021 - 11h49 | Última modificação: 16 Dezembro, 2021 - 12h00
Escrito por: Vanessa Galassi
A Rádio Cultura FM (100,9 FM) é a primeira e única rádio pública do DF. Com 33 anos de existência, a Rádio já abriu portas para artistas de prestígio nacional, contempla na programação públicos de todas as idades e vem tendo o cuidado ímpar de traduzir a história e a vida do povo do Distrito Federal segundo o próprio povo.
Diferente das rádios comerciais, diariamente, a Rádio Cultura tem como missão a difusão da educação, da cidadania, da cultura; a prestação de serviço; a publicação do conteúdo de interesse público. Diferente da rádio estatal, o interesse não é em divulgar ações do governo de plantão, mas considerar como essas ações refletem no dia a dia de toda uma população. Afinal, a Rádio Cultura é uma rádio pública.
Na contramão de sua importância para a formação da consciência crítica da sociedade e, na ponta, da própria democracia, as mais de três décadas de existência da Rádio Cultura vêm sendo marcadas pela precarização dos serviços e pela incompreensão de governos sobre o papel de uma rádio pública.
“A Rádio Cultura já teve um tempo áureo. Já houve momento com mais de 30 pessoas trabalhando. Era uma rádio atualizada, tinha equipe na rua. Ao longo do tempo, a rádio foi sofrendo perdas como falta de investimento e, muitas vezes, até mesmo a falta da compreensão do que é comunicação pública e o poder que ela tem”, conta Flávia Camarano, jornalista da Rádio Cultura.
Atualmente, a Rádio Cultura conta com um quadro de nove servidores. Esse pequeno grupo é responsável por fazer locução, edição, jornalismo; e colocar para funcionar uma programação de 24 horas por dias, sete dias por semana, com alcance em todo o DF. Uma programação que conta ainda com materiais de produção voluntária, selecionados por edital.
Nomeada para a carreira de analista em políticas públicas e gestão governamental em 2009, Flávia Camarano está na Rádio Cultura desde 2014. Ela conta que ao longo desses sete anos, mesmo com a limitação de pessoal, a impossibilidade de atuar nas redes sociais e de realizar pesquisas de opinião, o retorno da audiência é de “extremo carinho”. “Às vezes você está em uma confraternização, aí quando você se apresenta, as pessoas falam: eu adoro a Rádio Cultura”, conta com orgulho.
O retorno da audiência também indica que a compreensão sobre a ação estratégica de uma comunicação pública vem sendo, no mínimo, negligenciada pelos diversos governos que já geriram o DF desde o nascimento da Rádio, em 1988. “Já tive situação de pessoas virem comentar comigo que ouviam a Rádio até determinado ano, mas parou quando percebeu uma mudança na programação ou na linha editorial”, afirma Camarano.
O atual diretor da Rádio Cultura, Walter Silveira, conta que, quando iniciou sua gestão, em 2019, “encontrou a Rádio ‘acampada’ no primeiro andar do Espaço Cultural Renato Russo (espaço-sede), em uma situação completamente precária”. “Vinha de uma reforma que o Espaço Cultural teve, e a Rádio se instalou durante dois anos onde é a biblioteca. Para se ter uma ideia, a cabine de locução era o elevador de pessoas com deficiência”, relata.
Segundo ele, de lá pra cá, sua atuação tem se centrado essencialmente na revitalização da Rádio Cultura. “Em 2019, devido ao chamado decretão, ficamos ficou sem dez cargos (comissionados). Hoje, ela (a Rádio) é operacionalizada apenas por servidores, que se desdobram no papel de colocar a programação no ar. A revitalização da Rádio é de suma importância para que haja qualquer projeto de conteúdo mais eficaz e abrangente dentro do DF. Temos mão de obra escassa, equipamentos que estão há 15 anos sem renovação, num período em que o modelo de transmissão radiofônica sofreu uma transformação bárbara”, avalia.
Tiro no pé
De maneira imediatista, a Secretaria de Cultura do DF lançou em outubro edital para a contratação de uma Organização da Sociedade Civil (OSC) que seria responsável pelo desenvolvimento de atividades “complementares” às já desenvolvidas pela equipe da Rádio Cultura FM. Embora o termo que indica adição do que não existe, o edital deixava explícito que produção de reportagens, debates, entrevistas, serviços, coberturas de eventos e programas ao vivo poderiam ser desenvolvidas pela OSC.
De um lado, o diretor da Rádio Cultura FM, Walter Silveira, afirma que a OSC não ameaçaria o caráter público desse instrumento, e que “todos os equipamentos de Estado têm que ter parceria (com OSC) para se manter”. “O Estado não tem agilidade e nem competência para gerir um órgão de comunicação, pois não tem gente, não tem formação, não faz concurso”, reivindica.
De outro lado, representantes da sociedade civil temem que a gestão de serviços da Rádio Cultura FM seja o primeiro passo para a privatização do setor.
“Sabemos que a Rádio funciona pelo esforço dos bravos colegas servidores, a duras penas. Mas o que a gente percebe é a ausência de fortalecimento institucional da Rádio Cultura, de uma política de comunicação que privilegie essa canal público”, afirma o integrante do Conselho Curatorial da Rádio Cultura, Marcos Urupá, que também é dirigente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do DF. Ele questiona: “Depois de 14 meses, que seria o período dessa OSC, o que vai acontecer? Qual o legado que vai deixar? A Rádio vai voltar ao grau de deficiência que está hoje?”.
Para Urupá, a grande questão é que a rádio não é de interesse do GDF. “Isso ficou bem claro em uma reunião que tivemos com o secretário da Cultura”, conta. Segundo ele, a prova disso é que a Rádio Cultura FM tem Conselho Curatorial, que está desativado desde o início da gestão Ibaneis, e que fez uma série de propostas de políticas de valorização da Rádio, sem qualquer retorno. “Fizemos, inclusive, o Regimento Interno para a Rádio, e isso nunca foi publicado pela Secretaria de Cultura”, denuncia.
Já o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação no Distrito Federal (FNDC-DF) se manifestou sobre a contratação de uma OSC para a Rádio Cultura afirmando que este é um “nítido sinal de que o governo Ibaneis não tem nenhum interesse em fortalecer e institucionalizar o canal público de rádio do DF”. “Colocar a gestão da Rádio Cultura nas mãos de uma OSC significa privatizar a prestação de um serviço público”, afirma o documento.
Como proposta alternativa à OSC, o FNDC-DF apresenta a criação de empresa pública, ou fundação pública de direito privado, “dando robustez institucional para a rádio, permitindo a realização de concursos públicos e garantindo segurança jurídica para um veículo que atende a parte significativa da população do DF”.
Por amor
Enquanto a Rádio Cultura FM e seus servidores padecem da ausência total de vontade política em valorizar um instrumento público de comunicação, o pequeno grupo de servidores da rádio se desdobra para manter vivo e atuante o veículo.
“Assim como o carinho que o público tem pela Rádio, nós temos amor em trabalhar aqui. A máquina pública passa por uma série de problemas. Às vezes, falta orçamento, falta material. Mas nós aqui, enquanto corpo de servidores, por amor à Rádio, sempre mantivemos ela funcionando, pois, como servidores públicos, temos esse compromisso. A gente sabe que fazemos um trabalho para o bem da população, por isso enfrentamos tudo que é possível”, diz a servidoras da Rádio Cultura Flávia Camarano.
Na linha de frente da luta pela defesa do direito humano à comunicação, movimentos da sociedade civil batalham para impedir que a comunicação pública seja letra morta na Constituição; e que organizações privadas se apropriem dos poucos canais que hoje existem com a missão de atender, de fato, ao interesse público.
Por hora, a contratação de uma OSC para executar serviços da Rádio Cultura está suspensa. Segundo a Secretaria de Cultura, “a excepcionalidade para empenho ainda em 2021 não foi aprovada”.
Enquanto isso, o pequeno grupo de servidores e as organizações da sociedade civil continuam trabalhando duro – e com amor – para manter a Rádio Cultura FM no ar, mesmo diante da precarização das atividades e do total descaso com a comunicação pública. É resistência.