Escrito por: Marina Maria e Vanessa Galassi

Racismo |Retrocessos nas políticas públicas voltadas ao povo preto aumentam exclusão

Como as políticas ultraliberais implementadas nos últimos anos afetam mais gravemente mulheres negras

Jean Maciel

Um dos países que manteve pessoas escravizadas por mais tempo, o Brasil tem registrado aumento exponencial de casos de exploração da mão de obra de pessoas negras nos últimos anos. A constatação vai na contramão do que poderia ser elaborado como reparação histórica, cenário que se pavimenta com projetos adotados ou políticas públicas desmanteladas pelo governo federal desde o golpe de 2016.  

A reforma trabalhista, por exemplo, implementada em 2017, um ano depois de Michel Temer se apossar da presidência da República, foi uma das políticas facilitadoras desse processo de exploração da mão de obra de pessoas negras. Com ela, foi realizada a mais profunda alteração nos dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT): mais de 100 artigos atingidos com a benção do setor empresarial. No noticiário, a promessa era de que seriam geradas dois milhões de vagas de emprego em dois anos, e seis milhões em dez anos.  

No trimestre móvel encerrado em maio deste ano, a taxa de desocupação chegou a 9,8%, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), o menor desde o trimestre de dezembro, janeiro e fevereiro de 2016. Em 2015, um ano antes do golpe, o Brasil registrava taxa de desocupação de 8,3%, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O recuo apontado para o trimestre móvel encerrado em maio, entretanto, teve como trampolim a informalidade e a precarização: são 12,8 milhões de pessoas sem carteira assinada no setor privado e 25,7 milhões de pessoas que trabalham por conta própria, número formado majoritariamente por aqueles que fazem bicos e trabalhos temporários como estratégia de sobrevivência. 

O alvo prioritário da reforma trabalhista e das suas consequências são as mulheres negras. Isso porque, em um país estruturalmente racista, as mudanças propostas tornaram ainda mais difícil a inserção dessas mulheres no mercado de trabalho, assim como mais precária e em piores condições.

A pesquisa “A inserção da população negra e o mercado de trabalho”, realizada pelo Dieese, aponta que o rendimento mensal de uma mulher negra no Brasil é, em média, 46,58% menor do que o de um homem branco. Os números, que correspondem ao segundo trimestre de 2021, mostram ainda que, no que diz respeito à taxa de subutilização da força de trabalho, as mulheres negras lideram o ranking do desemprego, sendo 40,9% contra 18,5% no caso de homens não negros. 

“A precarização do trabalho recai muito mais sobre as mulheres negras. Infelizmente, nós, mulheres negras, ainda exercemos as profissões de menor salário. A maior taxa de ocupação é como trabalhadora doméstica. Além da precarização, tem também a uberização do trabalho, que incentiva a informalidade e as condições de trabalho análogas à escravidão”, afirma a secretária de Combate ao Racismo da CUT-DF, Samantha Sousa. 

Para a dirigente sindical, um dos caminhos para reverter este cenário é com a “promoção de políticas públicas de equidade racial, com ações afirmativas no trabalho e em todos os setores da sociedade”. “É necessário que haja uma reparação histórica para a população negra. E para isso, precisamos, de uma vez por todas, romper com a política neoliberal e racista implementada pelos governos Ibaneis e Bolsonaro”, diz.

Cota não é esmola

Na música “Cota Não é Esmola”, a cantora Bia Ferreira diz: “Experimenta nascer preto, pobre na comunidade / Cê vai ver como são diferentes as oportunidades / E nem venha me dizer que isso é vitimismo / Não bota a culpa em mim pra encobrir o seu racismo”. Essa é a realidade vivida por ela e por todas as pessoas negras do Brasil, sobretudo as mulheres.

Neste ano, a Lei das Cotas (Lei nº 12.711 de 2012) completa uma década. Embora sempre questionada por grupos (brancos) privilegiados, a iniciativa – que destina 50% das vagas em universidades e institutos federais para pessoas pardas, pretas, indígenas, com deficiências e estudantes de escolas públicas – sofre seus piores ataques no governo de Jair Bolsonaro, que institucionaliza o combate a qualquer forma de reparação histórica à população negra. Justamente porque, dessa forma, começa a se desenhar a equidade racial no Brasil, o que gera transformações definitivas em setores como o mercado de trabalho.

“As cotas foram apenas um dos instrumentos que a gente precisa para a inserção dessas pessoas no mercado, na sociedade, nas instituições. Mesmo assim, a gente considera que essa foi a maior revolução dentro da educação.  A partir do momento em que a gente coloca o povo, as pessoas, quem precisa realmente, quem nunca teve acesso, dentro das universidades para se formar, produzir teoria, pesquisa, pensar uma sociedade antirracista, as políticas de cotas são definitivamente a parte revolucionária que a gente conseguiu implementar na educação e na sociedade como um todo como uma política reparatória”, afirma a professora do Instituto Federal de Brasília (IFB), Moema Carvalho, que também é integrante do Movimento de Mulheres Negras.

Entretanto, a docente ressalta que, para além das cotas para o ingresso no ensino superior, é necessário que a população negra tenha também condições de permanência e êxito nesse espaço. “Sem todas as políticas públicas integradas, a gente não consegue manter negras e negros na universidade e não consegue intervir na inserção dessas pessoas no mercado de trabalho para construir uma sociedade realmente antirracista. Uma das dificuldades que a gente encontra é que a gente ainda está em um país escravocrata. Então, dentro dessa perspectiva, a gente não consegue inserir negras e negros no mercado de trabalho e nas instituições, mesmo que esses profissionais sejam altamente especializados”, afirma Moema.  

Segundo a professora e militante antirracista, de 2018 para cá, houve evasão flagrante de mulheres e homens negros dos espaços educacionais. “O que as alunas relatam é que precisam trabalhar, ajudar em casa, cuidar de irmãos, netos… O que a gente pode perceber é que se não há uma conexão entre educação, direito à cidade, políticas públicas sobre trabalho, renda, moradia, a gente não consegue inserir essa população no lugar que a gente está reivindicando desde 1930”. 

Não é acaso

Tanto a secretária de Combate ao Racismo da CUT-DF, Samantha Sousa, quanto a professora do IFB Moema Carvalho, são precisas quando se trata do ataque à população negra. Para elas, não há nada de incerto, imprevisível, casual, sobretudo no governo Bolsonaro.

“O que a gente vê é um projeto que elimina as pessoas negras da sociedade, seja pela necropolítica, seja pela violência simbólica, seja pelo não lugar a partir das instituições. O que a gente acompanha é a destruição de todos os mecanismos que poderiam proteger, emancipar, incentivar a população negra a ocupar espaços sociais, inclusive espaços políticos”, afirma Moema Carvalho. 

Para a professora, é com o ataque à população negra que Bolsonaro agrada o mercado. “Há interesse em ter boa parte da população ativa permanentemente desempregada. Isso para conter as manifestações e reivindicações, para arrochar salários e precarizar direitos. Esse é um conceito de Karl Marx, quando fala do exército industrial de reserva. E é claro que em um país racista, regido por um presidente racista, os mais prejudicados são as negras e os negros”, disse.

A dirigente CUTista Samantha Sousa destaca que o racismo estrutural não é um evento isolado no governo Bolsonaro, mas que se intensificou desde que o ex-capitão reformado do Exército chegou à presidência da República.

“A partir de 2003, com o governo Lula seguido do governo Dilma, foi iniciada uma escalada para garantir a negras e negros direitos surrupiados com a escravização. Foram criados vários instrumentos e organismos específicos para enfrentar o racismo, como as cotas nas universidades e concursos públicos e a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, por exemplo. Isso sem falar nos programas assistenciais como o ‘Minha Casa, Minha Vida’ e o ‘Bolsa Família’, que tinham como principais beneficiadas as pessoas negras, principalmente as mulheres. Fora a política econômica, que implementou ações como a valorização anual do salário mínimo e estimulou o emprego formal. Tudo isso foi ou vem sendo detonado por Bolsonaro”, contextualiza Samantha Sousa.

Samantha e Moema são mulheres negras, e vivem na pele as feridas geradas pelo arranque desvairado de quem compara negros a gado e acha que o povo deve escolher entre emprego e direito. Para elas, serão necessárias décadas para reconstruir o país que deu passos importantes para que a população negra fosse pensada como ser humano enquanto tal, em todas as esferas. O início dessa reconstrução é urgente, e exige a imediata interrupção do assalto socioeconômico e cultural feito contra o Brasil. Samantha e Moema, assim como milhares de mulheres e homens negros, concordam que isso pode – e deve – ser feito nas urnas, no próximo dia 2 de outubro.