Margarida Alves: “Uma guerreira intacta”
A história de vida e luta de uma das maiores líderes sindicais do campo sob a perspectiva de Maria Soledade: poeta, repentista, feminista, trabalhadora rural aposentada e amiga de Margarida Alves Em 1975, no apogeu da ditadura militar no Brasil, dona Maria Soledade Leite, uma paraibana valente que jamais permitiu qualquer sistema, arranjo ou […]
Publicado: 29 Julho, 2019 - 12h48
Escrito por: Vanessa Galassi

A história de vida e luta de uma das maiores líderes sindicais do campo sob a perspectiva de Maria Soledade: poeta, repentista, feminista, trabalhadora rural aposentada e amiga de Margarida Alves
Em 1975, no apogeu da ditadura militar no Brasil, dona Maria Soledade Leite, uma paraibana valente que jamais permitiu qualquer sistema, arranjo ou modo privá-la de liberdade, conheceu Margarida Alves. Soledade, que aos 17 anos não aguentou mais o comportamento conservador da família e saiu de casa com sua viola para fazer repente e poema Brasil afora, iniciava ali, aos 33 anos, ao lado de uma das maiores lideranças camponesas do mundo, uma vida de luta em defesa das mulheres e dos trabalhadores das trabalhadoras rurais de Alagoa Grande, na Paraíba.
Nascida em 1942, no sítio Genipabu, em Alagoa Grande, Maria Soledade levou seus versos ao Rio de Janeiro e Brasília antes de retornar à terra natal. Foram mais de 15 anos longe de casa. O tempo apenas reforçou a inquietude de Soledade contra injustiças, principalmente as de gênero. As rimas feitas ao som da viola sobre o sofrimento das mulheres já não eram suficientes para a sertaneja. Foi quando ela resolveu se associar ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, presidido por Margarida Alves.

O encontro com a líder sindical – primeira mulher a ser presidente de um sindicato na Paraíba – não foi de imediato. Soledade chegou a ir algumas vezes ao Sindicato, mas em todas elas Margarida Alves estava em atividade. O encontro entre a sindicalista e a poeta repentista que tinha se recém somado ao movimento de trabalhadores só se deu quando Soledade teve como testemunha sua viola. “Numa das minhas viagens, fui convidada por Maria da Penha Nascimento a fazer uma cantoria na assembleia no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande. Foi lá que conheci Margarida Alves: mulher de fibra, de guerra; uma guerreira intacta”, conta Soledade.
Daí para frente, Soledade seguiu os passos da amiga e principal orientadora política: Margarida Alves. “A gente sentia necessidade de organizar as mulheres. A gente reunia as mulheres de baixo do pé de pau mesmo e fazia formação, do jeito que dava. E a gente lutava, muitas vezes, contra o machismo dos próprios trabalhadores, que achavam que a gente estava desvirtuando as mulheres deles, falando que a gente não queria mais que elas cuidassem da casa, do marido”, lembra Soledade.
A poeta repentista lembra com saudades da amiga por quem tem tamanha admiração. “Também já fui alienada. Desconfiava de sindicato, de quem queria reforma agrária. E foi através de Margarida que vi que não era nada disso. O nosso povo só queria ter direitos. Era luta para ter 13º salário, carteira assinada; era luta para não sermos mais escravas dos homens e dos patrões.”

Para Maria Soledade, a atuação forte e corajosa de Margarida Alves refletia o que a líder sindical passara na infância. “Margarida foi filha de pais que foram expulsos da terra onde moravam e trabalhavam. Ela se revoltou com o que aconteceu na infância e na adolescência, mas nunca desistiu. Ela contava que, ainda na infância, junto com seus outros 8 irmãos, quando tinha lá pelos 7 ou 8 anos, fazia questão de ter sua própria enxadinha. E o que sempre me admirou nela foi a coragem, o amor que ela sentia pelos trabalhadores”, conta.
A morte de Margarida
“Dia 12 de agosto nasceu um sol diferente. Um aspecto diferente, o sol frio em vez de quente. Era Deus dando sinal da morte de um inocente (…) Jesus Cristo deu a vida para redimir os pecados. Tiradentes pela pátria foi morto e esquartejado. Margarida na defesa dos pobres e necessitados”. O trecho é do poema “A Morte de Margarida”, feito por Soledade em homenagem a amiga Margarida Alves.
Maria Soledade recebeu a notícia do assassinato de Margarida pela televisão. Ela estava em Cuité, município da Paraíba, quando um pistoleiro, a mando de usineiros do brejo paraibano, deu um tiro na testa da líder sindical que estava em casa cuidando dos filhos. Já era fim do dia quando uma voz chamou Margarida. Ela foi à porta. O tiro foi disparado. O assassino fugiu. E Margarida, que já tinha movido mais de 70 ações contra usinas de cana de açúcar da região, caiu sem vida no chão.
“Margarida já tinha sido ameaçada várias vezes por cartas, recados. Mas ela dizia: ‘da luta eu não fujo’! Teve um 1º de maio que ela falou: ‘é melhor morrer na luta que morrer de fome’. Era incrível a coragem dela. E o essencial da luta é a coragem de lutar pelo objetivo que temos”, diz com saudades Maria Soledade.

Para a poeta repentista, o crime que teve como objetivo silenciar a voz de Margarida Alves jamais será esquecido. “Era 1983 quando isso aconteceu. Fazem 36 anos e até hoje estão impunes. Mas a luta de Margarida e de todas nós não deixou que a nossa história fosse apagada, a história da nossa luta. É isso que a Marcha das Margaridas diz.”
Questionada como Margarida Alves agiria diante do governo Bolsonaro, Maria Soledade não titubeia: “A gente botaria fogo!”. A frase espontânea e carregada de simbologia não se perde completamente no passado. Neste ano, a Marcha das Margaridas traz como lema “Margaridas na luta por um Brasil com soberania popular, democracia, justiça, igualdade e livre de violência”. É como se Margarida Alves tivesse voltado para “botar fogo” no Brasil que hoje está ameaçado por políticas minimamente cruéis para o povo brasileiro. As margaridas marcharão determinadas, como sempre marcharam. E a história de luta de Margarida Alves, assim como seus anseios, se tornarão ainda mais fortes. Não há barbárie que impeça isso.
Fonte: CUT Brasília, por Vanessa Galassi