Fake news: o que fazer para que 2018 não se repita
Embora o tema das fake news tenha ganhado espaço no debate público e instituições importantes como o STF tenham pautado o tema, pouco foi feito para garantir integridade ao processo eleitoral de 2022
Publicado: 29 Agosto, 2022 - 14h00 | Última modificação: 29 Agosto, 2022 - 14h35
Escrito por: Vanessa Galassi para a CUT-DF
Não é de hoje que os processos eleitorais brasileiros são atingidos pela desinformação: manipulação de conteúdo e/ou informação inventada feitas propositalmente e de maneira organizada para influenciar o debate público e gerar benefícios para alguém ou um grupo. Em 1989, por exemplo, primeira eleição direta para presidente da República após a ditadura militar, a Rede Globo editou o debate realizado entre os então candidatos Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Fernando Collor de Mello (PRN, à época) na reta final do pleito. Na “mutreta”, como definiu Lula, assumida pela Globo mais de uma década depois, foram ao ar os melhores momentos de Collor e os piores de Lula. Naquele ano, Collor foi eleito.
Em 2018, com as novas tecnologias que possibilitam a disseminação de conteúdos de forma instantânea e em grande alcance, o processo conhecido popularmente como fake news explodiu no Brasil. Durante a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro (ex-PSL), foi inventado kit gay, mamadeira de piroca; Fernando Haddad, à época candidato a presidente da República pelo PT, foi acusado de ter seguranças cubanos; Manuela D’ávila, sua vice, foi alvo de montagem e apareceu nas redes com uma camiseta escrito “Jesus é Travesti”; e até o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) virou alvo quando se espalhou nos grupos de mensagens instantâneas que o órgão entregou códigos de segurança das urnas eletrônicas para venezuelanos. Nesse ano, Bolsonaro foi eleito.
De lá pra cá, embora o tema das fake news tenha ganhado espaço no debate público e instituições importantes como o Supremo Tribunal Federal (STF) tenham pautado o tema, pouco foi feito para garantir integridade ao processo eleitoral de 2022.
“Os processos levados ao STF não andaram, ficaram restritos ao sistema eleitoral e às instituições. A proibição de impulsionamento nas redes sociais não foi feita. Ao contrário, foi permitida pelo TSE a partir da pré-campanha. Vazamento e venda de dados, grupos organizados e financiados por recursos públicos e privados continuam sendo realidade”, afirma a professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB) Helena Martins.
A docente lembra que um dos importantes passos que poderiam ter sido dados para coibir a produção e disseminação de fake news foi interrompido para atender interesses de grupos. “O PL 2630, que ficou conhecido como PL das Fake News, teve tudo para ser votado, mas, por pressão das plataformas digitais, acabou não sendo. Perdemos com isso a oportunidade de ter uma regra que defina claramente quais são os procedimentos para se garantir transparência nas plataformas digitais, o que teria impacto sobre a questão da desinformação”, alerta.
Futuro em jogo
O resultado da ausência de ações eficientes e eficazes para combater as fake news é assustador pela capacidade de atingir direitos essenciais à vida. Foi, sobretudo, por causa das fake news que pessoas deixaram de se vacinar em plena pandemia por medo de terem um chip implantado em seu corpo, de ficarem inférteis, de terem câncer, de virarem Jacaré. Muitas dessas mentiras propagadas pelo próprio presidente da República, Jair Bolsonaro, que mantém firme a investida nas fake news, agora com o objetivo desacreditar o sistema eleitoral e construir “justificativa” para um golpe, caso o resultado das eleições deste ano não seja favorável a ele.
Em entrevista ao Jornal Nacional no último dia 22 de agosto, Bolsonaro voltou a dizer que o resultado das eleições só será aceito se o processo for “limpo”, sustentando as mentiras sobre a insegurança das urnas eletrônicas.
Além disso, assim como nas eleições de 2018, pipocam fake news contra o principal adversário de Bolsonaro nestas eleições: Lula. A Coligação Brasil da Esperança, que tem como candidato o ex-presidente, apresentou ao TSE 15 ações por propaganda irregular em razão de desinformação na internet. Segundo a Coligação, o conjunto de fake news “revela que há um grande movimento coordenado de grupos e apoiadores do candidato à reeleição Jair Bolsonaro”. Entre as desinformações, a volta do kit gay; a afirmação de que Lula acabaria com o emprego dos trabalhadores de aplicativos e revogaria o PIX; vídeo editado com conteúdo falso, fazendo entender que o candidato teria “agradecido o coronavírus”; e falas descontextualizadas de Lula sobre a Lei Maria da Penha, induzindo que o candidato é a favor da violência doméstica.
Para a dirigente da CUT-DF Ana Paula Cusinato, “o combate às fake news tem que ser prioridade na pauta de luta da classe trabalhadora”. Segundo ela, a disseminação de conteúdos falsos ou manipulados tem o potencial de definir o futuro.
“O Teto de Gastos, que congela investimentos em setores sociais; a reforma trabalhista, que aumentou o número de trabalhadores sem carteira assinada e com salários miseráveis; a reforma da Previdência, que acabou com a aposentadoria, são fruto de fake news. Primeiro porque foram definitivas tanto para o impeachment contra Dilma (Rousseff) como para a eleição de Bolsonaro. Depois, porque sustentaram as falsas promessas desses projetos, levando a população a acreditar que eles eram realmente necessários. Os resultados a gente vê hoje: sucateamento dos serviços públicos, desemprego, retirada de direitos sociais e aumento da concentração renda no nosso país, que tem como uma das principais características a desigualdade”, afirma.
Responsabilidades
Assim como a professora Helena Martins, Bia Barbosa, jornalista e representante da Coalizão Direitos na Rede no Comitê Gestor da Internet (CGI) no Brasil, reforça a atuação inconsistente das instituições brasileiras no combate às fake news. Entretanto, lembra que “todos nós precisamos ter responsabilidade neste processo eleitoral”.
Entre as iniciativas que podem ser tomadas, a jornalista destaca a necessidade do “comprometimento das agremiações e candidaturas, principalmente majoritárias, de não promover desinformação”. Para Bia Barbosa, uma boa estratégia é “chamar o eleitorado para ajudar a monitorar a circulação de fake news”, para que partidos e candidaturas possam responder desinformação com informação correta. Ela sugere ainda que partidos políticos e candidatos criem canais de denúncia sobre fake news.
Aos eleitores, segundo Bia Barbosa, cabe a tarefa de “não compartilhar informação antes de verificar se o conteúdo é fato”. Ela sugere que a consulta a agências de checagem seja uma prática.
A representante da Coalizão Direitos na Rede no CGI é assertiva ao comentar a precária contribuição das plataformas digitais no combate às fake news. “Muitas medidas são simples de serem efetivadas (pelas plataformas digitais), já estão sendo aplicadas em outros países, como os Estados Unidos e países da Europa, mas infelizmente ainda não foram adotadas no Brasil. É preciso que a sociedade pressione para que elas façam mais para garantir a integridade do processo eleitoral”, afirma Bia Barbosa.
Lançado em julho deste ano, o documento “Papel das Plataformas Digitais na Proteção da Integridade Eleitoral em 2022” traz 38 sugestões sobre transparência, protocolos de segurança e moderação de conteúdo para garantir a integridade do processo eleitoral; combater a violência virtual, inclusive com proteção de grupos historicamente violentados, como população LGBTQIA+; combater a desinformação; além de garantir os direitos dos usuários. O documento foi assinado por quase 100 organizações da sociedade civil, entre elas a Coalizão Direitos na Rede, e enviado ao Facebook, Instagram e WhatsApp (Meta); Google e YouTube (Alphabet); Twitter, LinkedIn, TikTok, Kwai e Telegram.
“Avaliamos que as políticas implementadas até o momento pelas plataformas digitais são insuficientes para proteger a higidez e a integridade do processo eleitoral. Ainda que haja diferenças entre elas, nenhuma das plataformas de redes sociais têm políticas totalmente adequadas para os desafios que já estão postos neste processo eleitoral em curso”, afirmam as entidades signatárias do documento Papel das Plataformas Digitais na Proteção da Integridade Eleitoral em 2022.
Entre as medidas apontadas na iniciativa da sociedade civil está a transparência das plataformas digitais. “As plataformas devem ser transparentes e tornar públicas as informações de: a) quantas pessoas têm dedicadas à proteção da integridade eleitoral que falam português e compreendem o contexto local; b) quais os mecanismos internos externos de moderação, inclusive parcerias com agências de checagem”.
O passo importante parece difícil de ser dado. Durante audiência pública na Câmara dos Deputados no dia 5 de julho, a ex-funcionária do Facebook Frances Haugen afirmou que a plataforma não protege as eleições no Brasil e que a empresa não quer interferências e pesquisas sobre a plataforma, porque isso compromete os lucros. "Eles não querem que o ecossistema de regulamentação opere. Eles não querem acadêmicos independentes pesquisando seus problemas", disse.
A poucos dias das eleições, o solo para a proliferação de fake news é fértil. Os benefícios financeiros e/ou políticos que essa prática traz a grupos influentes na política nacional e internacional é, definitivamente, o ponto central de sua manutenção. Ao mesmo tempo, os prejuízos gerados a populações inteiras, como já foi visto do Brasil, são imensuráveis.
“Façamos sim, cada um de nós a nossa parte para combater a disseminação das fake news. Mas tenhamos certeza de que enquanto a classe trabalhadora, a população em geral, não reivindicar permanentemente saídas democráticas às fake news, ficaremos à mercê de interesses escusos, tendo nosso direito à liberdade de expressão surrupiado e nosso futuro longe daquilo que consideramos equânime, justo, esperançoso”, alerta a dirigente da CUT-DF Ana Paula Cusinato.