Escrito por: Marina Maria e Vanessa Galassi
A saúde na capital federal enfrenta uma verdadeira pandemia de descaso, alimentada por uma gestão privatista e indiferente à população
De janeiro a abril de 2018, 912 moradores do Distrito Federal foram diagnosticados com dengue. No mesmo período do ano de 2022, quatro anos após o início da gestão do governador Ibaneis Rocha, as notificações da doença no DF chegaram a 32.512. Em percentuais, o aumento é de 3.464%.
Os dados foram levantados pelos Boletins Epidemiológicos realizados pela Secretaria de Vigilância à Saúde e pela Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Os documentos ainda apontam que o número de óbitos foi o mesmo quando analisado o período de janeiro a abril dos anos examinados: um óbito em 2018 e outro em 2022.
Já a análise de casos graves de dengue é bem distinta. Em 2018, foi registrado apenas um caso grave, o mesmo que evoluiu para óbito. Já em 2022, foram confirmados 420 casos de dengue com sinais de alarme e 25 casos graves.
Os números chocantes ainda podem estar subnotificados. Segundo Fátima Rola, do Conselho de Saúde do Distrito Federal (CSDF), muitas pessoas chegam à rede de saúde com dengue, mas têm fatores de risco como diabetes e hipertensão, por exemplo, que fazem o quadro evoluir para óbito. Nestes casos, a notificação do falecimento nem sempre não se dá pela dengue.
Há 40 anos como servidora da Secretaria de Saúde do DF, Fátima Rola representa o segmento dos trabalhadores no CSDF. Ela avalia que a inabilidade do Governo do Distrito Federal para gerir a saúde pública é um dos principais fatores que fizeram explodir os casos de dengue na unidade federativa.
“Desde novembro do ano passado, o Conselho (Conselho de Saúde do DF) vem fazendo reiteradas cobranças ao GDF. Mas o governo vem apostando na política do ‘quanto pior, melhor’: deixa para fazer licitações de última hora, e essas licitações são feitas com valores exorbitantes; diz que não tem orçamento, e a sociedade desiste de exigir melhorias. Estamos cobrando há meses um planejamento e a execução desse planejamento, mas quase nada foi feito”, afirma Fátima Rola.
A integrante do Conselho de Saúde conta que o GDF chegou a instalar “algumas tendas da dengue a pedido do Conselho”, já que os usuários do sistema público de saúde não estão conseguindo ser atendidos nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) próximas as suas residências. Mas a ação está longe de ser suficiente para adequar o atendimento à demanda.
“Se as UPAs estivessem funcionando, se houvesse servidor suficiente, a população não seria tão desgastada. Com a crise econômica, muita gente deixou o plano de saúde privado e veio para a rede pública. Isso já era previsto, mas o GDF não se preparou, se exime dessa responsabilidade”, diz Fátima Rola.
Hospital de campanha contra dengue montado na cidade de Brazlândia (DF), em 2013. Foto: Fabio Pozzebom/Agência Brasil
Falta tudo
Lígia Beatriz é mãe da Grasiele, do Gabriel e da Linda. Moradora de São Sebastião, um dos principais focos de dengue do DF, a trabalhadora doméstica sempre utilizou a rede pública de saúde para toda a família. Em fevereiro deste ano, Gabriel, de 10 anos, foi diagnosticado com dengue. Ele conseguiu fazer o teste no posto de saúde próximo a sua residência. Mas Lígia, que tinha os mesmos sintomas do menino, não.
“Em fevereiro eu ainda estava grávida da Linda. Mas não tinha mais teste. Passei pelo menos uma semana muito mal, com dores em todo corpo. Minha preocupação era com o bebê”, conta Lígia.
Sem o teste, a assistência à trabalhadora mãe de três filhos ficou prejudicada. O monitoramento da doença foi retardado, feito pelo número de plaquetas no sangue, e a orientação foi para que ela, que sentia fortes dores em todo corpo e precisava cuidar do filho, voltasse ao hospital para reavaliação do quadro.
Joana Silva* é servidora pública da Secretaria de Saúde do Distrito Federal há 10 anos. Ao longo de sua trajetória, já se deparou com situações que mostraram a ineficiência e o descaso do governo com a saúde pública. Durante os momentos mais críticos da pandemia, a trabalhadora viu de perto a falta de testes para a Covid-19. E agora, diante do aumento dos casos de dengue, Joana relata o mesmo problema em relação à testagem para a dengue, um quadro que se agrava diante da carência também de itens básicos para o tratamento da doença.
“Para quem está na ponta, na assistência direta, a impressão é de que a Secretaria de Saúde está sempre atrasada e desconectada com os tempos assistenciais e as doenças sazonais. No pico da dengue, não temos soro de reidratação oral disponível. Há menos de quatro meses, tivemos que fazer distribuição desse soro, pois havia risco de vencimento. Já iniciamos a seca e teremos, de forma impactante, o aumento dos casos de infecções respiratórias agudas. Está faltando salbutamol (substância indicada para o tratamento ou prevenção do broncoespasmo) na rede. Todo ano tem pico de dengue, todo ano tem período crítico de infecções respiratórias agudas. Essa situação já é de conhecimento da Secretaria. Por que não há planejamento?”, indaga.
A servidora, que prefere ocultar o nome verdadeiro para não sofrer retaliações, ainda denuncia a falta de itens básicos de higiene, como papel higiênico e papel toalha. “Infraestrutura e fornecimento de insumos em quantidade e no tempo adequado, bem como a compensação do número de servidores afastados, são dois nós críticos importantes para a garantia do acesso dos usuários a uma saúde de qualidade e em tempo oportuno”, avalia.
Servidores pagam o pato
Servidores da saúde pública do DF também são vítimas da dengue. Na UBS 01 do Guará, onde a conselheira do CSDF Fátima Rola atua, vários servidores precisaram ser afastados para realizar o tratamento contra a doença.
Com a explosão dos casos de dengue, a inabilidade do GDF em gerir a saúde pública e o número insuficiente de servidores, os cenários impostos aos centros de saúde são de “verdadeiro terror”, segundo Fátima Rola.
“O sofrimento está muito grande, inclusive para os trabalhadores, que estão adoecendo. Esses dias, um usuário quebrou um consultório inteiro. Ele queria o atendimento. Nós já tínhamos encerrando a quantidade de atendimento que poderíamos fazer. Já tínhamos um monte de pessoas tomando soro. Tentamos explicar para ele que era necessário que voltasse depois para fazer os exames, pois naquela hora a capacidade estava esgotada. Ele não aceitou e quebrou tudo. A gente entende o desespero da população, mas não conseguimos resolver um problema que é de gestão pública”, desabafa.
O mosquito Aedes aegypti é encontrado principalmente em residências do DF. Mulheres são as principais vítimas. Em 2022, 55% das pessoas diagnosticadas com dengue são mulheres. Foto: Divulgação
Inoperante
Até o último dia 16 de maio, o site da Secretaria de Saúde do DF não abriu um campo específico para orientar sobre a prevenção à dengue ou informar dados da doença causada pelo mosquito Aedes aegypti, que pode ser fatal.
Matéria publicada no site da Secretaria no dia 14 de maio fala sobre uma “força-tarefa” de visitação às residências, feitas por agentes da Secretaria de Saúde em parceria com o Grupo de Trabalho de Combate à Dengue do Corpo de Bombeiros Militar. Segundo a matéria, "além do Guará, a força-tarefa passou nas regiões de Ceilândia, Planaltina e Sobradinho”, com agendamento para ir à Cidade Estrutural nos próximos dias. Isso em uma realidade de 33 regiões administrativas, num período de alerta para o aumento do número de casos de dengue.
Em outra matéria, publicada no portal da Secretaria em abril, é informado que foram instaladas tendas “para prestar os cuidados iniciais aos pacientes” na área externa de UBSs em Ceilândia, Brazlândia, Planaltina, Sobradinho, São Sebastião e Paranoá. Além disso, o texto diz que “treze carros também percorrem as ruas das regiões com maior incidência de casos para a aplicação do chamado ‘fumacê’”.
Em um cenário que registra mais de 32,5 mil casos notificados de dengue só de janeiro a abril de 2022, as ações são implementadas de forma tímida e com opacidade dos dados oficiais. Nas ruas ou nas mídias, não há empenho evidente do GDF para achatar os números relacionados à dengue.
Saída pelo voto
“Muita coisa só vai sair debaixo do tapete quando o governo mudar”. A fala impactante é da servidora da Secretaria de Saúde Maura Lúcia. Há 35 anos na ativa, a servidora, que também é docente do ensino superior em enfermagem, acredita que “a precarização (da saúde pública) não é um acidente, é um projeto”.
“Hoje, a Secretaria de Saúde está literalmente sucateada. Como conselheira de saúde que fui, com o pouco que conheço de política pública, o sucateamento é um mecanismo comum, usado para depois vender barato, colocar na mão de amigos”, analisa a servidora.
Ela explica de forma didática as consequências da terceirização, projeto político defendido pelo governador Ibaneis Rocha com empenho. “A terceirização é nefasta para o trabalhador, mas ela também é maligna para o usuário. Se eu pego a minha casa, entrego para alguém a chave da minha casa, o salário que eu recebo, e deixo esse alguém gerenciar isso da forma que ele achar melhor, daqui a pouco não entro mais nem na minha casa. Com a terceirização, sem controle social, quem é dono do ‘barraco’ atende quem ele quer, do jeito que ele quer, prioriza quem ele quer; institui dupla porta, faz tudo o que não deve ser feito quando se trata de política pública de saúde”, esclarece.
Para Maura Lúcia, “o governo Ibaneis deixou a desejar”. “Vimos o superfaturamento dos serviços que foram implantados sem fiscalização, sem controle social do que foi gasto. Vamos ver quando a conta chegar. A gente já recebeu parte dessa conta perdendo amigos na pandemia, perdendo familiares e perdendo a nossa própria saúde”, alerta.
Há cerca de cinco meses das eleições gerais, que decidirá também quem ocupará a principal cadeira do Executivo local e quem serão os parlamentares que comporão a Câmara Legislativa, o presidente da CUT-DF, Rodrigo Rodrigues, alerta para a importância do voto consciente.
“O problema da saúde pública do DF é, sobretudo, um problema de gestão, problema esse que não é estabelecido de forma inocente. E é no voto que a gente pode fazer a diferença. Votar naqueles que se aliam aos interesses de quem quer tornar direitos como saúde e educação em mercadoria, através de privatização, voucher e outros artifícios, é definitivo para afundar de vez o DF. A gente precisa entender que nosso voto faz a diferença, e que o governo que está aí não se importa com o que o povo precisa”, diz o presidente da CUT-DF.