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Brasileiros recorrem à solidariedade para fugir dos efeitos da privatização  

Reportagem especial da CUT-DF mostra como o projeto de privatizações e a ausência de políticas públicas em meio à pandemia deixam milhares de famílias na miséria, precisando recorrer à solidariedade para viver

Publicado: 11 Março, 2021 - 16h01 | Última modificação: 11 Março, 2021 - 16h37

Escrito por: Vanessa Galassi para a CUT-DF

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Vanessa Galassi para CUT-DF

Jaqueline Sousa da Silva Alves tem 33 anos, quatro filhos em idade escolar e um quinto, que nasce em pouco mais de um mês. Moradora do Riacho Fundo II, ela e o marido trabalham como catadores de materiais recicláveis para tentar colocar comida dentro de casa. Mas, segundo Jaqueline, “a conta não fecha”.

“As coisas aumentaram absurdamente e a gente não está tendo condições de pagar. A gente vem vivendo de doações. Se for depender de benefício, não comemos. Tem dia que acaba o gás e a gente tem que ir cozinhar no vizinho. Já ficamos duas, três semanas sem poder comprar o gás. Já estou com conta de água atrasada, com conta de luz atrasada. E nesses últimos meses foi ainda mais difícil, por causa da pandemia”, conta Jaqueline Alves, coordenadora do Movimento Popular por Moradia do Distrito Federal e Região (AMORA).

A dura realidade de Jaqueline é a mesma de milhões de brasileiras e brasileiros que estão ou voltaram à situação de pobreza e miséria. Isso devido à política econômica que vem ditando os rumos do país desde o golpe de 2016, com a venda das empresas estatais no topo da lista de estratégias.

Gás de cozinha que chega a R$ 100 em alguns estados do país, pacote de arroz de 5kg a R$ 26 na promoção, gasolina prestes a ultrapassar R$ 6 o litro. Esses e outros aumentos impostos na vida de Jaqueline e do restante do povo brasileiro estão diretamente ligados à venda – nem sempre explícita – das empresas que na realidade deveriam ter como máxima a realização do interesse coletivo.

O debate sobre as privatizações de estatais e seus prejuízos é antigo e sempre foi acalorado. Entretanto, diante da pandemia da covid-19 e da ausência total de políticas públicas, a discussão se torna ainda mais urgente. Acontece que, mesmo em um cenário caótico, a pressão do empresariado para trazer a privatização como a solução de todos os problemas permanece a mesma, senão mais forte.

No último dia 25 de fevereiro, o jornal Estadão, um dos três maiores em termos de circulação nacional, publicou na coluna Opinião o texto “Uma porta para a privatização”. No material, o jornal, controlado pela família Mesquita, umas das donas da mídia do Brasil, afirma que “se for levada a sério, privatização de empresas como a Eletrobras poderá ser importante para o crescimento econômico do País e aliviar as finanças públicas”.

Na outra ponta, a população, sem direito à democratização da comunicação e carente de conhecimento político, não tem informações concisas sobre os prejuízos irremediáveis da venda das empresas privadas para a iniciativa privada e, muitas vezes, chega a concordar com o próprio algoz.

Pouco ou nada se fala, por exemplo, que, em âmbito internacional, quase 900 reestatizações foram realizadas. Como principais motivos, os altos preços impostos pelas empresas privadas e o serviço de baixa qualidade. Até mesmo países como Estados Unidos e Alemanha fazem parte da lista daqueles que trabalharam para trazer empresas de volta para o domínio público. Segundo o TNI (Transnational Institute), nos últimos anos houve “pelo menos 835 (re)municipalização de serviços públicos em todo o mundo, envolvendo mais de 1600 cidades de 45 países”. A maioria das reestatizações foi realizada em setores de energia, água, transporte, administração local (esporte, cultura, funerárias, etc), atenção à saúde e assistência social e educação.

Do combustível à mesa

Uma das empresas estatais que está na mira do governo Bolsonaro-Guedes é a Petrobras. A estatal ainda não foi formalmente privatizada, mas vem realizando uma política privatista que beneficia os acionistas (majoritariamente os privados) em detrimento da população e da soberania nacional. Isso vem sendo feito através da venda de subsidiárias, da redução de investimentos nacionais e da aplicação de uma política abusiva de preços, implementada a partir de 2016, quando a Petrobras decidiu acompanhar a variação do preço internacional do barril de petróleo e a variação do câmbio nos preços praticados nas refinarias da petrolífera.

Em nota técnica publicada no último dia 5 de março, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) afirmou que “os aumentos nos preços de combustíveis e derivados impactam direta ou indiretamente em praticamente todos os segmentos da economia, por serem a principal fonte de energia utilizada no transporte de mercadorias e da população”.

“Para dar uma ideia, de outubro de 2016 a 2 de março de 2021 (último reajuste praticado pela Petrobras), nas refinarias, a gasolina subiu 73,3%, o diesel, 54,8%, e o gás de cozinha, 192%”, cita a nota do Dieese e continua: “Somente nos dois primeiros meses de 2021, houve sete reajustes no preço da gasolina, que chegou a subir 39,5%; cinco aumentos no preço do diesel, que acumulou alta de 32,7%; e ainda dois reajustes no preço do gás de cozinha, que encareceu 11,4%”.

A catadora de materiais recicláveis Jaqueline Alves, que já havia mostrado preocupação com o preço do gás de cozinha, mostra que todos esses números, percentuais e a complexa política de preços da Petrobras também atingiram o grupo que vive da renda gerada pela reciclagem de outra maneira: no transporte de carga. “A gente precisa de caminhão, de carro pra transportar os materiais, para nossos processos. E o diesel e a gasolina estão muito caro. Não está dando”, conta.

A alta no preço dos alimentos, que afeta Jaqueline e sua família, também tem como principal motivador a privatização de empresas estatais, seja direta ou indiretamente.

“Nossa agricultura é petrodependente, ou seja, depende de petróleo para tudo: para mover caminhões, para transportar, para os tratores rodarem; os pneus são feitos de petróleo. A maioria dos insumos agrícolas é resultado de petroquímica: o potássio, o fosfato, a uréia. E a privatização da Petrobras incide diretamente nos custos de produção dos alimentos, o que eleva o custo para o consumidor final”, explica o dirigente do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA) Frei Sérgio Gorgen.

De acordo com ele, a relação da privatização das estatais com a alta do preço dos alimentos também acontece de uma outra forma “perversa”, a com o sucateamento da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). A estatal não foi privatizada, mas a exemplo de outras empresas públicas, como a própria Petrobras, vem sofrendo forte desinvestimento, o que impossibilita o exercício de sua função, que tem como principais eixos garantir a compra do produtor no tempo de safra, garantir a compra quando há excedente de produção e garantir a venda dos alimentos a preços acessíveis durante todo ano.

“A Conab não faz mais estoque de alimentos. Hoje, esses estoques, praticamente todos, são privados. Não há mais estoque de arroz, nem de feijão, nem de trigo. E a especulação é sempre muito grande quando esse estoque está em mãos privadas, o que embute o elemento de aumento de preço por conta da manipulação de estoque de alimentos”, explica Frei Sérgio.

Ele afirma que, “o estoque público de alimento tem função de regular preços do mercado”. “Com o estoque público, caso os comerciantes privados elevem os preços de alimentos, o governo entra com o estoque e controla (os preços).”

O dirigente do MPA ainda esclarece que a alta do dólar – muito comentada pela mídia comercial como principal fator da alta dos alimentos – influencia nos preços abusivos para se comer, mas está em segundo plano quando comparada ao sucateamento da Conab.

“O que o dólar impactaria na produção de mandioca, na produção de batata, na produção do tomate, por exemplo, que são alimentos que não têm como importar? Se nós tivéssemos produção abundante de arroz, de feijão, ia sobrar para o mercado interno. Não há impacto do dólar no feijão, no arroz, desde que não se importe. Há um impacto (na elevação dos preços dos alimentos) com a alta do dólar, mas um impacto residual”, diz.

De janeiro a novembro de 2020, o preço dos alimentos nos supermercados sofreu alta avassaladora. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o arroz teve alta de preço de 70% e o feijão preto de 40%. Leite, frutas, legumes, carne, frango e ovos tiveram aumentos maiores do que 10% no ano.

No escuro

A catadora de materiais recicláveis Jaqueline Alves contou que está com a conta de luz atrasada. Infelizmente, a projeção é de que a situação da moradora do Riacho Fundo II fique ainda pior. A Companhia Energética de Brasília (CEB) foi privatizada recentemente e já há indicativo de aumento da tarifa.

A situação não é diferente em outros estados brasileiros. Com o aval do governo Bolsonaro-Guedes, as seis distribuidoras de energia do grupo Eletrobras foram entregues à iniciativa privada. A população do Acre, Alagoas, Amazonas, Piauí, Rondônia e Roraima foi impactada com reajustes tarifários que passaram dos 38%. É o caso de Rondônia. Leiloada em 2018 e comprada pelo Consórcio Oliveira Energia, o estado foi submetido a um aumento de 38,5% na conta de luz.

Sem considerar os graves prejuízos que caem diretamente no colo da população, o governo federal vem insistindo em privatizar toda a Eletrobras. Um dos supostos argumentos é a necessidade de investimento no sistema de geração e transmissão de energia elétrica, que para Guedes só pode ser feito pelo setor privado. Caso contrário, segundo o ministro da Economia, Paulo Guedes, “a luz vai apagar”.

“A Eletrobras vem tendo sucessivos lucros. Inclusive, neste ano, as projeções indicam que devemos bater o lucro do ano passado, que, segundo dados oficiais, fechou em cerca de R$ 13 bilhões”, rebate a dirigente da Confederação Nacional dos Urbanitários (CNU) da Região Centro/Norte (FURCEN), da Confederação Nacional dos Urbanitários e do Sindicato dos Urbanitários do DF, Fabíola Latino Antezana.

Segundo a dirigente sindical, a Eletrobras vai além de números e percentuais, sendo definitiva para garantir a soberania do país e a segurança energética.

Sem direito de sonhar

A catadora de materiais recicláveis Jaqueline Alves conta que, “graças ao ‘papai do céu’ e, depois, ao presidente Lula, conseguiu sua casinha”. Mas o sonho da casa própria está mais longe do que nunca de ser alcançado frente às constantes ameaças de privatização dos bancos públicos, casadas à extinção do maior programa habitacional da história do Brasil.

Milhares de brasileiros e brasileiras só puderam ter um teto próprio graças aos bancos públicos, que financiam 70% das moradias, já que têm como uma das funções sociais o desenvolvimento do país. Isso significa que deixar financiamento de moradia nas mãos de bancos privados quer dizer elevar o preço da compra e inviabilizar o sonho de tantas pessoas.

“O desmonte e o ataque que este desgoverno tem colocado com relação às coisas públicas afeta diretamente os sonhos e a sobrevivência de cada uma e de cada um de nós”, afirma o presidente do Sindicato dos Bancários de Brasília, Kleytton Morais.

Além da privação da moradia, a privatização dos bancos públicos também pode inviabilizar o direito de se alimentar. Atualmente, bancos públicos financiam mais de 75% da agricultura nacional.

Ser identificado como cidadão, ter acesso a materiais didáticos e até a medicamentos também pode se tornar inalcançável para milhares de brasileiros e brasileiras. Isso por causa da iminente privatização dos Correios.

“Hoje, os Correios são a única empresa pública presente em todos 5.570 municípios brasileiros. Naqueles mais afastados, aonde só se chega de barco, por exemplo, os Correios estão lá. E é nesta única representação do Estado que muitas pessoas conseguem emitir documentos pessoais, receber livros didáticos, receber medicamentos. Empresas privadas, com certeza, não terão interesse em atender esses lugares, já que não há nenhum atrativo financeiro, não há indicativo de geração de lucro”, afirma a dirigente do Sindicato dos Trabalhadores dos Correios no DF, Amanda Corcino, que também integra a Federação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Correios e Telégrafos e Similares (Fentect).

Além de impedir que parcela da população brasileira tenha acesso à cidadania, a privatização dos Correios também recai no bolso da população.

“O valor do frete de entrega das mercadorias vai aumentar. Só assim haverá lucro. E é isso que empresa privada quer. Imagine a demora para entregar correspondências para populações mais afastadas! Qual empresa vai se submeter a passar dois, três dias navegando em um Rio para chegar a um determinado lugar? É por isso que empresas privadas de entrega utilizam os serviços dos Correios”, lembra Amanda Corcino.

O dever é do Estado

A solidariedade sempre foi uma constante do movimento sindical de trabalhadores e trabalhadoras e outras organizações da sociedade civil. Durante a pandemia da covid-19, a ação solidária, que acontece de forma horizontal entre as duas partes, vem sendo, muitas vezes, a única forma de sobrevivência de famílias inteiras.

A catadora de materiais recicláveis e coordenadora da AMORA, Jaqueline Alves, é uma dessas pessoas que teve na solidariedade a saída para a fome. Ela foi uma das 205 pessoas que recebeu cesta básica em ação realizada pela CUT-DF, no Riacho Fundo II, neste mês de março.

“Se não fosse a solidariedade da CUT e de outros movimentos, não sei o que seria da gente”, diz a mulher trabalhadora.

As ações de solidariedade, entretanto, não arrefecem a luta da CUT pela existência de um Estado que tenha como prioridade a responsabilidade com o seu povo.

“As pessoas estão morrendo de fome. Nós não podemos deixar que isso aconteça. A solidariedade, material e de classe, sempre foi marca da nossa Central. E é por isso que realizamos essa atividade de entrega de cestas básicas. Mas a nossa luta por um Estado atuante, que promova políticas públicas, que olhe para seu povo, é permanente. Com a privatização de tudo que é nosso, tudo encarece, os serviços públicos mínguam, o desemprego aumenta e tudo fica mais difícil. Por isso dizemos que privatizar o Brasil faz mal. A solidariedade é urgente em tempos de ódio e desmonte do Estado, mas a luta vai além: por um Brasil forte, soberano e do povo; com emprego e distribuição de renda. O que não é possível com o nosso país nas mãos da iniciativa privada”, afirma o presidente da CUT-DF, Rodrigo Rodrigues.