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A cartilha para saúde de homens trans omitida pelo governo

No dia 2 de janeiro de 2019, o governo retirou do site do Ministério da Saúde uma cartilha com orientações voltadas a homens transexuais, que trata de cuidados com seus corpos. A omissão ocorreu um dia após a posse de Jair Bolsonaro e não foi anunciada publicamente, mas foi revelada pelo jornal O Estado de […]

Publicado: 08 Janeiro, 2019 - 14h09

Escrito por: Vanessa Galassi

Vanessa Galassi
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No dia 2 de janeiro de 2019, o governo retirou do site do Ministério da Saúde uma cartilha com orientações voltadas a homens transexuais, que trata de cuidados com seus corpos. A omissão ocorreu um dia após a posse de Jair Bolsonaro e não foi anunciada publicamente, mas foi revelada pelo jornal O Estado de S. Paulo.

Intitulada “Homens Trans: vamos falar sobre prevenção de infecções sexualmente transmissíveis”, a cartilha de 49 páginas traz informações como: direitos dessa população no SUS (Sistema Único de Saúde), cuidados com técnicas de alterações corporais, cuidados no sexo, e a possibilidade de gravidez para essa população, que é composta por pessoas que nascem com o corpo lido como feminino, mas que se identificam com o gênero masculino.

A cartilha fora lançada há cerca de seis meses, e o governo afirma que ainda está avaliando se retirará de circulação as 23,5 mil cópias físicas do material, distribuídas há menos de três meses. A omissão na internet ocorreu no mesmo dia em que o governo Bolsonaro extinguiu a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação. Ela abordava gênero e orientação sexual, entre outros, como fatores de exclusão social.

A cartilha suspensa foi elaborada em parceria com entidades que representam a população transexual brasileira, entre elas a Rede Trans, que divulgou em sua conta no Facebook um material próprio que também aborda o assunto.

Prática ligada a prazer levou à omissão, dizem fontes

A reportagem do Estadão destaca, entre as causas da suspensão do material, a presença de informações a respeito do chamado “pump”. Trata-se de um instrumento que funciona de forma similar a uma seringa, mas que possui uma abertura na ponta grande o suficiente para inserir o clitóris e expô-lo ao vácuo. A circulação de sangue aumenta no órgão após ele ser sugado.

Assim como mulheres cisgênero, homens trans podem usar essa técnica em seus clitóris para obter prazer sexual. Ela também é usada, em muitos casos associada à ingestão de hormônios masculinos, com o objetivo de ampliar o clitóris e aproximá-lo da configuração de um pênis. O mesmo tipo de técnica é usado por homens cis em seus pênis, também com os objetivos de obter prazer ou de aumentá-los.

No material suspenso, havia um esquema do órgão sexual feminino e um desenho do “pump”. Segundo a justificativa apresentada ao Estadão por fontes não identificadas do Ministério da Saúde, o material seria inadequado porque:

  • A prática seria feita para obtenção do prazer, por isso não deveria ser abordada pela pasta
  • O uso do pump poderia aumentar o risco de traumas, lesões e infecções no órgão sexual
  • O material deveria vir com esclarecimentos. As fontes não detalharam, no entanto, quais esclarecimentos são esses, e não informaram por que o suposto problema foi identificado seis meses após o lançamento

Questionado pelo Nexo, o Ministério da Saúde não se manifestou confirmando ou desmentindo o posicionamento obtido pelo Estadão. Em entrevista ao mesmo jornal, o recém-empossado ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, afirmou que o “pump” não é indicado devido ao risco de lesões. Ele também afirmou: “não vi nada de grosseiro, a não ser pela falta de apelo científico”.

A medicina reconhece e aplica a expansão de tecidos com uso de força mecânica em diversos processos da cirurgia plástica, como na reconstrução dos seios, por exemplo. Faltam, no entanto, estudos que comprovem cientificamente a eficácia do vácuo para aumentar clitóris ou pênis, segundo Daniel Mori, psiquiatra do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, ligado à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Em entrevista ao Nexo, a supervisora do Serviço de Endocrinologia do Hospital das Clínicas, Elaine Maria Frade Costa, afirma que seu grupo vem desenhando um estudo com o uso de “pumps” adaptados para o clitóris dos homens trans -que comprovadamente aumenta com o uso de testosterona- com o intuito de compreender se eles contribuem de fato para o crescimento adicional do órgão.

Mori avalia que é necessário falar sobre a técnica porque ela é difundida na vida real, seja com o objetivo estético, seja com o objetivo de obter prazer. “Se existe algum material com orientações profissionais do que é, como usar e como não usar, sempre acho válido. Saber usar o ‘pump’ de forma correta pode prevenir insatisfação e lesões físicas.

”Na época do lançamento do material, a diretora do departamento de HIV/Aids do Ministério da Saúde, Adele Benzaken, afirmou que: “com essa iniciativa, o departamento atende à demanda da população transmasculina que reivindicava um material específico para eles e, ao mesmo tempo, dá visibilidade e preenche uma lacuna [sobre] o tema”.

Seu nome consta na lista de organizadores da cartilha. Procurada pelo Estadão após a retirada do material do ar, ela não se manifestou.

Governo Bolsonaro gera apreensão entre LGBTI

Em entrevista à Folha de S.Paulo, a presidente da Rede Trans Tatiane Araújo afirma que o governo não teve “nem o respeito de nos comunicar” sobre a suspensão do material, com o qual a entidade colaborara. Ela avalia que a possível suspensão da cartilha indica o “desfavorecimento” do ministério em relação às ações de prevenção voltadas a transexuais.

A apreensão se relaciona à atuação política de Jair Bolsonaro, marcada por declarações homofóbicas, frequentemente jocosas. Seu plano de governo não citou nenhum projeto para LGBTIs, mas, em seu discurso de posse, o presidente prometeu combater aquilo que chama de “ideologia de gênero”.

Em um vídeo que viralizou, filmado enquanto comemora a posse, a pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular e ministra da Mulher, Saúde e Direitos Humanos, Damares Alves, afirmou que o Brasil está em “uma nova era” em que “menino veste azul e menina veste rosa”. Mais tarde, disse se tratar de uma metáfora contra o que também chama de “ideologia de gênero”.

De acordo com pesquisa de Rogério Diniz Junqueira, ligado ao Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) e à UnB (Universidade de Brasília), o termo é utilizado por grupos conservadores religiosos desde a década de 1990 no combate a preceitos elaborados na academia sobre temas como feminismo, sexualidade e gênero.

Trata-se de um grupo amplo e heterogêneo de teorias, mas no geral elas apontam que os gêneros masculino e feminino e as posições sociais associadas a eles são construções culturais modificáveis. E que oposições binárias, como a de homem e mulher, ou heterossexual e homossexual, não dão conta da diversidade de práticas sexuais e identidades que ocorrem no mundo de fato -como pessoas que se identificam como heterossexuais mas sentem também homofilia e realizam atos homossexuais, por exemplo.

Teorias que descrevem os gêneros masculino e feminino como construções culturais modificáveis foram endossadas na década de 1990 em conferências da ONU voltadas aos direitos das mulheres, que afirmavam sua necessidade de autonomia.

Grupos conservadores têm combatido esses conceitos. Muitos afirmam que a biologia humana estaria na raiz dos gêneros masculino e feminino, e que o desejo heterossexual seria uma norma natural. Para muitos religiosos, as teorias que debatem gênero, feminismo e sexualidade seriam uma ameaça à família nuclear heterossexual, e mesmo à sociedade como um todo.

Em entrevista publicada no jornal Folha de S. Paulo no dia 31 de dezembro de 2018, o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta afirmou que campanhas de prevenção contra o HIV não deverão ofender famílias. “Tem a prevenção, que é como se disponibiliza o preservativo. Vamos ter que ver a maneira como isso se dá sem ofender as famílias, sem ofender aqueles que entendem que isso possa ser uma invasão do Estado em seu ambiente familiar. Mas de alguma maneira temos que disponibilizar isso, tem que estar mais próximo das pessoas.

”O Nexo conversou com Daniel Mori, da USP, a respeito de alguns pontos presentes na cartilha omitida pelo governo que poderiam ajudar homens trans a cuidarem de seus corpos. Ele mesmo chegou a distribuir o material entre pacientes transmasculinos.

O que há na cartilha

PUMP

Segundo Mori, por estar associado ao prazer sexual, o “pump” diz respeito a outros aspectos de sua saúde do homem trans.

‘Ter uma boa relação com o corpo e saber usar um instrumento que vá trazer prazer sexual está relacionado à sua satisfação sexual, que vai influir na sua saúde mental. Para as pessoas se sentirem adequadas com o corpo, têm e saberem lidar com todas as suas particularidades’, afirmou.

Em sua opinião, o instrumento ‘é algo bem difundido no meio de homens trans, todo mundo procura na internet para obter mais informação’.

‘Já tive pacientes que reclamaram porque machucou a região vaginal; eles têm que ser orientados corretamente, como parar de aumentar a pressão assim que sentir desconforto ou dor.’

‘BINDERS’ NOS SEIOS

É comum entre homens trans que não retiraram as mamas utilizarem faixas ou coletes para comprimi-las e fazer com que seus corpos se aproximem mais da aparência tipicamente associada a corpos masculinos.

A pressão em excesso ou o uso por tempo demais pode, no entanto, trazer problemas, como feridas na pele, complicações respiratórias ou de coluna. ‘Orientamos não ficar mais do que oito horas por dia e avaliar a força da compressão’, afirma Mori.

TERAPIA HORMONAL

Uma outra estratégia usada por homens trans para modificarem seus corpos é a ingestão de hormônios masculinos.

Eles contribuem para a redistribuição da gordura corporal, que fica menos concentrada nas nádegas, no culote e nos seios e mais na região abdominal. As mamas diminuem, o clitóris aumenta, pelos crescem de forma mais pronunciada, a voz fica mais grave. Há uma propensão maior a que os músculos aumentem.

O uso de hormônios aumenta, no entanto, o risco de problemas no fígado, de aumento da pressão arterial, de agressividade, de ganho de peso e de alterações em células que fazem compõem o sangue. Isso pode levar à formação de coágulos, causando dor e inchaço em órgãos e contribuindo para complicações. Por isso, a terapia hormonal deve ser realizada com acompanhamento médico.

FERTILIDADE

Outro resultado da alteração hormonal pode ser a infertilidade, no caso a incapacidade de engravidar e gestar filhos. Isso nem sempre acontece, especialmente se os hormônios são usados de forma adequada, afirma Mori.

Trans homens devem ser informados tanto de que podem continuar férteis, e de que devem, portanto, se prevenir caso não queiram engravidar, quanto de que os casos de infertilidade são, na maioria das vezes, reversíveis.

ISTS

Assim como o resto da população, homens trans estão sujeitos a ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) – o termo vem sendo assimilado no lugar de ‘doenças sexualmente transmissíveis’ —, como HIV, hepatites, sífilis e HPV.

Hepatites podem ser prevenidas com vacinas. E, assim como mulheres cis, recomenda-se que homens trans se vacinem contra o HPV.

‘Como há possibilidade de os homens de fazer tanto sexo anal quanto vaginal, as orientações precisam ser bem amplas, incluindo o uso do preservativo masculino no parceiro ou do feminino em si mesmo’, afirma Mori.

Precauções de higiene devem ser tomadas ao utilizar ‘packers’ no sexo. ‘Packers’ são próteses penianas não fixas, que imitam a textura e a cor da pele, fazem volume e têm um canal que pode ser usado para urinar em pé. A higienização também é recomendada ao compartilhar brinquedos sexuais, como vibradores.

DIREITOS NO SUS

Nome social é aquele que pessoas transexuais e travestis podem usar para se identificar, mesmo quando não alteraram o seu registro civil, o presente no Registro Geral. A cartilha informa que o Ministério da Saúde permite que esse nome seja usado em qualquer serviço de saúde, algo que ocorre desde 2009.

Segundo Mori, o documento também possui informações sobre ambulatórios especializados de diversas cidades onde homens trans podem buscar atendimento.

Fonte: Jornal Nexo

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