PL 5384/2020 e as cotas raciais como instrumento de promoção da democracia
Publicado: 26 Setembro, 2023 - 00h00 | Última modificação: 26 Setembro, 2023 - 17h17
Tramita no Senado Federal o projeto de lei (PL) 5384/2020, que revisa a Lei 12.711, conhecida como Lei de Cotas. Aprovada na Câmara Federal, a proposta promove melhorias à política afirmativa: inclui quilombolas entre os destinatários do programa; reduz de um e meio para um salário mínimo o valor de rendimento máximo de cada família no preenchimento das vagas reservadas aos estudantes de baixa renda; estabelece que o programa de cotas seja piso e não teto de inclusão, ao determinar que a aplicação do programa ocorrerá somente após serem preenchidas todas as vagas de ampla concorrência.
Mas como tudo que mira na reparação da dívida histórica com a população negra, o PL é alvo de ataques.
As tentativas de deslegitimar uma das principais políticas afirmativas voltadas à população negra – senão a maior – evocam teorias nunca comprovadas. Aumento do racismo no país, a miscigenação que indica uma “democracia racial”, a queda das notas nas universidades. Questões que, propositalmente, entendem o racismo como uma prática exclusivamente interpessoal, e não um sistema de dominação social. Aliás, vale ressaltar que pesquisas realizadas pelo Ipea, FGV, USP e outras instituições mostram que não há diferença significativa entre as notas de alunos cotistas e não cotistas nas universidades federais. Em alguns casos, os alunos cotistas têm melhores avaliações que os alunos não cotistas.
O passado, o presente e as projeções numérico-científicas de futuro não deixam dúvidas: qualquer discussão em torno da Lei de Cotas deve ser feita para fortalecê-la e ampliá-la. Uma máxima que deve valer também para a Lei 12.990/2014, que estabelece a reserva de 20% das vagas de todos os concursos públicos federais (com três ou mais vagas ofertadas) para pessoas negras.
Pesquisa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostra que, em 2011, um ano antes da sanção da Lei de Cotas nas universidades, apenas 880 mil matrículas foram feitas por alunos pretos ou pardos. Cinco anos depois, em 2016, esse número pulou para 3,6 milhões. E em 2022, foram registrados 4,1 milhões de universitários pretos e pardos.
A UnB foi a primeira universidade federal do país a adotar cotas raciais nos processos seletivos para graduação, antes mesmo da sanção da Lei de Cotas. Lá, são 20 anos dessa política. No início, a iniciativa estabelecia que 20% das vagas do vestibular se destinariam a candidatos negros e previa vagas para indígenas por demanda. A prática foi aprovada pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe), em 6 de junho de 2003. Desde 2004, primeiro ano de implantação da política, mais de 38 mil estudantes entraram na universidade pelo sistema.
Já no serviço público, a partir de dados do Sistema Integrado de Administração de Pessoal (Siape), o Republica.org mostra que, em 2008, antes da Lei de Cotas nesse segmento, a presença de pessoas negras no funcionalismo federal ficava na casa dos 29%. Em 2014, ano de aplicação da Lei de Cotas, esse número saltou para 42%. Em 2020, seis anos da aplicação da lei no serviço público, o percentual chegou a 43%.
Se a Lei de Cotas nas universidades tem como um dos objetivos democratizar o acesso à educação superior e possibilitar que a população negra acesse espaços dominados há séculos por não negros, a Lei de Cotas nos serviços públicos garante, sobretudo, que as pessoas negras participem do processo de formulação e execução de políticas públicas que visem à equidade racial.
Entretanto, mesmo com a Lei de Cotas, as diferenças entre pessoas negras e não negras, tanto no ensino superior quanto no serviço público, continuam abissais.
Nas universidades, os cursos mais concorridos, como Medicina e Direito, por exemplo, têm a maioria da turma formada por pessoas brancas. E as dificuldades socioeconômicas impostas à população negra também determinam que grande parte desse grupo não tenha condições de terminar a graduação.
Já nos serviços públicos, segundo dados do Siape, apenas 1,2% dos cargos de direção e assessoramento mais elevados do Executivo federal foram ocupados por mulheres negras, em 2020.
No mercado de trabalho privado, onde não há lei de cota racial, pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) constatou que pessoas negras são maioria na subocupação. No segundo trimestre de 2022, 10% das mulheres negras ocupadas e 6,5% dos negros ocupados estavam nessa situação. Em comparação, na mesma situação estavam 6,7% das mulheres não negras e 4,0% dos homens não negros. A pesquisa mostra ainda que enquanto o homem não negro recebeu, em média, R$ 3.708 por mês, a trabalhadora negra ganhou, em média, R$ 1.715, e o negro, R$ 2.142.
Da mesma forma em que não há dúvidas sobre os benefícios da Lei de Cotas, também não se pode negar que essas mesmas políticas precisam passar por um processo de aperfeiçoamento/ampliação.
Criar mecanismos que garantam a permanência da juventude negra nas universidades e, no caso dos serviços públicos, fazer reserva de vagas mesmo quando os editais prevejam menos de três vagas para cada disciplina ou área específica de conhecimento, são estratégias irrenunciáveis.
Entender que a Lei de Cota ainda é insuficiente para dar por quitada a dívida político-econômica e social com a população negra do Brasil não é rechaçar tal política afirmativa. Ao contrário, é ressaltá-la e exigir melhorias para que avance.
A Lei de Cotas, tanto para as universidades federais como para o serviço público, não garante, individualmente, a superação da desigualdade racial. Todavia, a política afirmativa é imprescindível na engrenagem que faz o Brasil girar para frente na consolidação da democracia.
Por isso, precisamos dizer “sim” ao PL 5384/2020! Vamos nos mobilizar e garantir que o projeto de lei seja aprovado no Senado Federal para, posteriormente, ser sancionado pelo presidente Lula.