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Artigo

O regime militar brasileiro e os ataques à educação pública

Publicado: 03 Abril, 2024 - 00h00

Nessa semana rememoramos os 60 anos do golpe militar no Brasil quando, em 1964, em uma articulação de interesses empresariais nacionais e internacionais, interrompeu-se a democracia em nosso país e instalou-se uma feroz ditadura por 21 longos anos. Interrompido oficialmente em 1985, as marcas desse terrível período do regime militar persistem até os dias de hoje, em todos os âmbitos e níveis de nossas vidas, mesmo quando não as percebemos. A principal delas talvez seja o nível da violência policial que se tem no Brasil, lugar do mundo onde nossas polícias militares mais matam (em especial as populações negras e periféricas das grandes cidades), mas que também mais morrem.

E na educação? Quais são esses feitos e efeitos que a ditadura militar nos deixou como legado e que persistem até nos dias de hoje? Fala-se muito do uso e da apropriação das escolas públicas brasileiras para difundir a ideologia do regime militar. De fato, a introdução de disciplinas obrigatórias na grade curricular da educação básica tinha como objetivo forjar a ideologia do regime de então pela educação de nossas crianças e jovens. E criar nossas crianças e jovens obedientes às leis dos militares. A imposição da disciplina “Educação Moral e Cívica” no currículo escolar se deu por meio do Decreto-Lei nº 869, de 1969. Só foi banida dos nossos currículos com a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB), de 1996. Depois de 11 anos do fim formal do regime militar brasileiro.

Nesse mesmo Decreto-Lei, impuseram também uma outra disciplina, para substituir as disciplinas de Filosofia e de Sociologia que existiam à época: a Organização Social e Política do Brasil (OSPB) tentou substituir o pensamento crítico pela concepção de sociedade do militarismo em voga. Qualquer semelhança com uma proposta recente de reforma do ensino médio, aquela que estamos tentando ainda hoje derrubá-la por completo no Congresso Nacional, não é mera coincidência.

A ditadura militar, que proibia o pensamento diferente e diverso daqueles que ocupavam o poder e que queriam impor a todas as pessoas, foi muito ruim para educação de uma forma geral. Precarizou muito o ensino e as escolas brasileiras, com falta de investimento público na área, além de ter desvalorizado os educadores e as educadoras em nosso país, com a ausência absoluta de qualquer política de valorização profissional, salarial e de condições de trabalho. Por fim, não podia ser diferente, censurou, perseguiu e matou muitos estudantes e professores durante o regime sanguinário que se abateu no país. Foi um período de verdadeiro terror para muitas famílias brasileiras, que até hoje lutam por memória e justiça.

Mas o regime militar também foi responsável por roubar o futuro de uma geração inteira. Há 53 anos, em 1971, os militares impuseram uma reforma do ensino médio que, a exemplo dessa de 2017, do Governo de Michel Temer e do então ministro Mendonça Filho, que agora o Congresso Nacional tenta enterrar de uma vez por todas, veda o acesso universitário aos mais pobres. Com o objetivo alardeado à época de profissionalizar a educação, o governo militar instituiu a Reforma do Ensino de 1º e 2º Graus (Lei 5.692/1971), abolindo a formação geral antes oferecida pelo ensino secundário, que podia ser clássico ou científico.

Em um contexto de milagre econômico e industrialização que o país vivia, o argumento era a necessidade de o país ter mão de obra qualificada para o trabalho. Diziam os militares que precisávamos de trabalhadores bem formados. E que o sistema educativo de 1º e 2º graus atendia a necessidade de desenvolvimento econômico pelo qual o país passava. Dessa forma, de modo absolutamente autoritário e sem nenhum debate dentro ou fora do Congresso Nacional, a Lei foi aprovada em tempo recorde. Os Estados e Municípios brasileiros que se virassem para se adequar à nova legislação. Outra vez, qualquer semelhança com a Reforma do Ensino Médio de Temer não é mera coincidência. Trata-se mesmo de um projeto antigo das elites do dinheiro: o de pôr fim ao ensino propedêutico (preparatório para o ensino superior) e transformar a educação para os pobres em cursos profissionalizantes para formar os trabalhadores braçais. Afinal, lugar de pobre nunca foi e nem pode ser na universidade.

Mas isso também era uma cortina de fumaça. Não era a necessidade de mercado o principal motivador daquela reforma. Ela aparecia em um momento em que, apesar de ainda não termos a universalidade da educação básica brasileira, que só veio com a Constituição de 1988, o governo queria uma solução para os chamados “excedentes”, estudantes que concluíam o ensino médio da época, eram aprovados no vestibular, mas que não conseguiam entrar em nenhuma faculdade ou universidade. Nessa época, os vestibulares não eram classificatórios. Todos que concluíam o ensino secundário, atingindo uma determinada nota, teriam em tese o acesso ao ensino superior garantido.

É claro que esse sistema não deu certo e os filhos de classe média terminaram por ter, estudando em escolas privadas no ensino secundário, acesso facilitado às universidades públicas que, naquele tempo, não tinham política nenhuma de expansão e tampouco de suporte adequado. E os Estados e Municípios não tiveram também suporte para dar conta do ensino profissionalizante que, no texto frio da lei, era o objetivo propalado. Foi um desastre, como o projeto das nossas elites sempre preconizou. E essa foi mais uma herança do regime militar: consolidou a dualidade do ensino público e privado em nosso país.

Em um vídeo que tem circulado muito nas redes sociais, o educador Paulo Freire, nosso patrono da educação brasileira, quando questionado em um programa de entrevista sobre o legado da ditadura militar para a educação, depois de falar da contribuição dela para consolidar o autoritarismo brasileiro, destacando que ela estragou a nossa educação, ele termina sua resposta com essa linda reflexão: “O meu gosto é que nós todos, brasileiros e brasileiras, meninos e meninas, velhos, maduros… que nós todos tomemos um tal gosto pela liberdade, um tal gosto pela presença no mundo, pela pergunta, pela criatividade, pela ação, pela denúncia, pelo anúncio, que jamais seja possível no Brasil a gente voltar àquela experiência do pesado silêncio sobre nós”. Que assim seja!

* Heleno Araújo é presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação – CNTE e professor das redes públicas de educação básica do Estado de Pernambuco e do Município de Paulista – PE